Aqui está-se sossegado
Longe do mundo e da vida
Cheio de nao ter passado
Até o futuro se olvida
Aqui está-se sossegado
Tinha os gestos inocentes
Seus olhos riam no fundo
Mas invisiveis serpentes
Faziam-na ser do mundo
Tinha os gestos inocentes
Aqui tudo é paz e mar
que longe a avista se perde
Na solidão a tornar
Em sombra o azul que é verde
Aqui tudo é paz e mar
Sim, poderia ter sido
mas vontade nem razão
O mundo tem coduzido
A prazer ou conclusão
Sim, poderia ter sido
Agora não esqueço e sonho
Fecho os olhos, oiço o mar
E de ouvi-lo bem, suponho
Que veio azul a esverdear
Agora não esqueço o sonho
Não foi propósito, não
O seus gesos inocentes
Tocavam no coração
Como invisiveis serpentes
Não foi propósito, não
Durmo desperto e sózinho
Que tem sido a minha vida?
Velas de inútil moinho
Um movimento sem lida
Durmo desperto e sózinho
Nada explica nem consola
Tudo está certo depois
Mas a dor que nos desola
De um não serem dois
Nada explica nem consola
Fernando Pessoa - Poemas Inéditos
Que Feliz Destino o Meu
MOTE
«Que feliz destino o meu
Desde a hora em que te vi;
Julgo até que estou no céu
Quando estou ao pé de ti.»
GLOSAS
Se Deus te deu, com certeza,
Tanta luz, tanta pureza,
P'rò meu destino ser teu,
Deu-me tudo quanto eu queria
E nem tanto eu merecia...
Que feliz destino o meu!
Às vezes até suponho
Que vejo através dum sonho
Um mundo onde não vivi.
Porque não vivi outrora
A vida que vivo agora
Desde a hora em que te vi.
Sofro enquanto não te veja
Ao meu lado na igreja,
Envolta num lindo véu.
Ver então que te pertenço,
Oh! Meu Deus, quando assim penso,
Julgo até que 'stou no céu.
É no teu olhar tão puro
Que vou lendo o meu futuro,
Pois o passado esqueci;
E fico recompensado
Da perda desse passado
Quando estou ao pé de ti.
António Aleixo in Este Livro que Vos Deixo