Neste meu espaço aberto, está exposto um livro incompleto......

17
Jul 09

 

Não sei quantas almas tenho
 
Não sei quantas almas tenho.
Cada momento mudei.
Continuamente me estranho.
Nunca me vi nem acabei.
De tanto ser, só tenho alma.
Quem tem alma não tem calma.
Quem vê é só o que vê,
Quem sente não é quem é,
 
Atento ao que sou e vejo,
Torno-me eles e não eu.
Cada meu sonho ou desejo
É do que nasce e não meu.
Sou minha própria paisagem;
Assisto à minha passagem,
Diverso, móbil e só,
Não sei sentir-me onde estou.
 
Por isso, alheio, vou lendo
Como páginas, meu ser.
O que segue não prevendo,
O que passou a esquecer.
Noto à margem do que li
O que julguei que senti.
Releio e digo: "Fui eu ?"
Deus sabe, porque o escreveu.
 
Por "aqui" andei, pelas "páginas do meu ser" e "fiquei nesta" agora,  Deus sabe, porque o escreveu.
  

 

publicado por noitesemfim às 13:48

04
Jul 09

Aqui  está-se sossegado

Longe do mundo e da vida

Cheio de nao ter passado

Até o futuro se olvida

Aqui está-se sossegado

 

Tinha os gestos inocentes

Seus olhos riam no fundo

Mas invisiveis serpentes

Faziam-na ser do mundo

Tinha os gestos inocentes

 

Aqui tudo é paz e mar

que longe a avista se perde

Na solidão a tornar

Em sombra o azul que é verde

Aqui tudo é paz e mar

 

Sim, poderia ter sido

mas vontade nem razão

O mundo tem coduzido

A prazer ou conclusão

Sim, poderia ter sido

 

Agora não esqueço e sonho

Fecho os olhos, oiço o mar

E de ouvi-lo bem, suponho

Que veio azul a esverdear

Agora não esqueço o sonho

 

Não foi propósito, não

O seus gesos inocentes

Tocavam no coração

Como invisiveis serpentes

Não foi propósito, não

 

Durmo desperto e sózinho

Que tem sido a minha vida?

Velas de inútil moinho

Um movimento sem lida

Durmo desperto e sózinho

 

Nada explica nem consola

Tudo está certo depois

Mas a dor que nos desola

De um não serem dois

Nada explica nem consola

 

 

Fernando Pessoa - Poemas Inéditos

 

 

 

  

 

publicado por noitesemfim às 18:40

30
Jun 09

Que Feliz Destino o Meu

 

 

MOTE

«Que feliz destino o meu
Desde a hora em que te vi;
Julgo até que estou no céu
Quando estou ao pé de ti.»

GLOSAS

Se Deus te deu, com certeza,
Tanta luz, tanta pureza,
P'rò meu destino ser teu,
Deu-me tudo quanto eu queria
E nem tanto eu merecia...
Que feliz destino o meu!   

Às vezes até suponho
Que vejo através dum sonho
Um mundo onde não vivi.
Porque não vivi outrora
A vida que vivo agora
Desde a hora em que te vi.

Sofro enquanto não te veja
Ao meu lado na igreja,
Envolta num lindo véu.
Ver então que te pertenço,
Oh! Meu Deus, quando assim penso,
Julgo até que 'stou no céu.

É no teu olhar tão puro
Que vou lendo o meu futuro,
Pois o passado esqueci;
E fico recompensado
Da perda desse passado
Quando estou ao pé de ti.

António Aleixo in Este Livro que Vos Deixo

publicado por noitesemfim às 00:13

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